Foi numa segunda-feira. Início da noite. Coração acelerado, cabeça a mil buscando ordenar tudo o que tinha para falar. Faltavam poucos minutos para iniciar a live. E, de repente, o silêncio.
Não, não foi um problema técnico. Tampouco a falta de pessoas para acompanhar a live. Muito pelo contrário. A cada minuto, entravam mais e mais pessoas, cada uma trazendo energia, carinho, afagos que acalentaram meu coração e fizeram valer o sentimento de gratidão pelo tempo e boas energias doados por cada um que lá estava.
O silêncio era meu. Explico: o silenciar-me faz parte do meu modo de conseguir escutar o que ´está lá dentro´, no coração. Minutos antes de começar a falar, procuro silenciar. Silenciar para não apenas ouvir, mas verdadeiramente escutar.
Já pararam para pensar no quanto isso tem se tornado difícil?
Pare agora e preste atenção em quantos sons você passará a escutar a partir do momento em que silencia. Quando estamos envolvidos pelo barulho, um ruído a mais ou a menos faz pouca diferença. Andamos agitados e envolvidos por tantas coisas que dificilmente paramos para escutar. Não escutamos até mesmo os sons que estão a nossa volta.
Ação e reação. Lei da física e da vida. Saber ouvir e procurar entender as pessoas são atitudes que fazem bem a quem fala e a quem escuta. Pena que essas ações e reações têm sido cada vez mais raras na sociedade contemporânea. Muito se fala e pouco se escuta. A capacidade de compreensão, então, se perde em meio à falta de tempo e de paciência, ao individualismo, à dificuldade em se doar e do comportamento egoísta que toma conta do mundo.
Talvez seja por isso que muitas pessoas têm morrido na solidão por falta de alguém que as escute.
Tenho aprendido que escutar é uma das artes mais belas que o ser humano pode desenvolver, até porque uma vida saudável, espiritualmente falando, passa inevitavelmente pela dinâmica da escuta.
O que fazer? Para onde correr? Quem procurar? Ir contra essa maré não é escolha fácil. Requer humildade e esforço. E, acima de tudo, decisão para estar à disposição do outro. O que significa, muitas vezes, só ouvir e nada falar, como também trocar opiniões e partilhar ideias.
A perda da capacidade de ouvir é também a perda da capacidade de se importar com o outro e de servi-lo. As relações estão superficiais, passageiras e até mesmo o laço mais forte, o familiar, está doente de atenção, de conversa e de escuta.
É preciso acordar diante desse comportamento que invade a sociedade e, como se a embriagasse, não a deixa perceber o mal que causa. Até mesmo as novas tecnologias, inevitáveis e sinônimo da evolução do ser humano, quando mal usadas têm parcela de culpa nesse isolamento de que o ser humano está sendo vítima. Ou vilão?
Falar e ouvir são vitais à convivência, mas as mudanças nas relações sociais, de trabalho, lazer, culturais e dos textos virtuais causaram uma revolução na troca entre as pessoas. Para compreender o outro, além de querer e estar disponível, é preciso respeito à vivência interior.
Desconectar-se das redes sociais quando chegar em casa e “dar ouvidos” a quem é real e está ao seu lado já é um começo. Desacelerar o passo para ouvir quem lhe pede uma informação também pode dar um novo significado ao seu dia. São atitudes bem simples, que podem até parecer insignificantes, mas experimente e perceba como podem mudar ou salvar uma vida. Acredito que a grande questão é voltarmos a nos interessar pelas pessoas.
Numa sociedade voltada para a produção de riqueza e estímulo ao consumo, temos perdido um pouco a noção do quanto precisamos uns dos outros e que os laços que nos unem de um ponto a outro do universo se fortalecem pela acolhida. É preciso ouvir o ser, a pessoa! Não o que dizem dela ou o que imaginamos a seu respeito, mas a escutar com o coração aberto, desarmado. É mais do que simplesmente ouvir palavras, é acolher a pessoa do jeito que ela está, com suas dores ou alegrias, e dar-lhe o direito de se expressar sem a preocupação de ser julgada ou rejeitada. É exigente, eu bem sei, mas benéfico! Quando escutamos o outro, também aprendemos com ele, crescemos com suas experiências e evitamos muitos erros.
“Nada substitui o efeito profundo do toque de uma pessoa sobre outra. Ele é muito simbólico”, afirma Leandro Karnal. Felizmente, porém, hoje é possível fazer uma visita virtual a um parente ou amigo que está isolado, levantar um brinde e até compartilhar uma refeição – tudo através da tela do computador ou do celular. Ainda que falte o olho no olho, não deixa de ser uma maneira de ouvir alguém, trocar informação e dar atenção. “Mesmo sem abraço, aperto de mão ou beijo, funcionamos por simbolização”, pondera.
A live com Aline de Moraes, do canal @historiasmuitoaocontrario, foi um momento de quebra, de desaceleração, de contraponto. Foi um presente em seus mais simbólicos sentidos. Um momento onde nos fizemos presentes, reinventando o ´estar presente´ e vivendo o presente em plena quarentena. Tal qual crianças ao brincar. Foi um momento de desafio e testa à novas formas de conexão. Conexões que desafiam nossa cultura de corporalidade. Abrimos a câmera, abrimos o áudio, mas – principalmente – abrimos a alma e o coração.
Fui presentado com um momento de silenciar, de falar e de ouvir. E, de tudo o que ouvi, a história budista que Aline trouxe foi um convite à reflexão. E, com o convite de Aline, pude rememorar o significado de ´generosidade´. O generoso divide, sem medo de faltar. Porque a generosidade é esse tipo de amor que a gente tem para enxergar o outro como um pedaço da gente também. É distribuir seu bem querer, para que todos os outros possam o receber. É ouvir, e ser ouvido. É entender que a felicidade está no caminho e, não, no fim. É entender que a alegria é, na realidade, resultado de encontros alegres com outros, encontros que aumentam nossos poderes, e da instituição desses encontros de tal maneira que perdurem e se repitam.
As necessidades de encontro humano nesta fase de distanciamento forçado parecem clamar por um cuidado especial com os próprios dispositivos tecnológicos de acoplamento e dispersão. Exige um tempo. Abandonado e despretensioso.
A flexibilidade das crianças (sempre as crianças!!!) nos indica as pistas de um importante gesto a ser feito nesta época de suspensão e reavaliação dos rumos da humanidade: brincar.
Os experimentos são tentativas de explorar essa situação e o dispositivo que nos circunda. Brincar e inventar presenças possíveis. Criar rituais de partilha.
Quero agradecer a cada um que partilhou esse momento e acalentou meu coração com tantas manifestações de carinho antes, durante e depois da live. Sim, a partir desse momento amorável e memorável compartilhado entre nós e proporcionado por Aline, venho recebendo novas manifestações de carinho, demandas de projetos que exercitem o afeto e depoimentos e histórias de transformação que me emocionam, encantam e me fazem crer que toda crise traz uma chance de você se tornar melhor. É uma escolha.
“Eis o que aprendi
nesses vales onde se afunda o poente:
afinal, tudo são luzes, e a gente se acende é nos outros.
A vida é um fogo, nós somos suas breves incandescências.”
(Mia Couto)
Querido amigo Eduardo,
Que coisa mais sublime o seu texto sobre a dança de falar e ouvir, coreografia da amizade.
Eu só tenho a agradecer pelo lugar de intensa reflexão para aonde você e o projeto Bunequinhos nos conduziu.
Foram notas de esperança de uma música universal, com graves de inquietação e agudos de empatia.
Eu agradeço por fazer soar, em nossos ouvidos, naquela live, acordes do amor ao próximo e por alimentar a certeza de que o mundo tem jeito, sim.
Gratidão por isso! O canal ,agora, também é a sua casa.
Que alegria receber essa mensagem, amiga Aline!
Como expressar gratidão frente a tamanha generosidade?
Aqui também é sua casa. Seja sempre bem vinda!